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11/07/2014

Conto poema

Trecho do conto Poema que dá título ao livro do escritor Alex Andrade - Confraria do vento editora






Poema simplesmente não saberia dizer o que seu nome significava. Não saberia dizer de onde vinha, como tinha chegado à vida e nem onde estavam as saídas. Pareceu-lhe vagamente sonhador ter entrado na vida assim como se tivesse entrado espremida por uma brecha feita só para ela. O fato é que quando abriu os olhos estava viva. E como não conseguiria voltar atrás, ficou ali de pé, no meio de uma rua cheia de carros, pessoas e prédios, muitos prédios.Ela era uma figura meiga. Sua meiguice era mais estranheza do que meiguice. Dois olhos enormes numa magreza de rosto, um sorriso tão triste que confundia o que se passava na sua cabeça, ela era toda ao contrário. Uma colega de trabalho não sabia identificar quando ela estava sentindo alegria ou tristeza, mesmo quando varria os cômodos do hotel em que trabalhava, o que para ela significava a maior felicidade do mundo, pois trabalhar era o que lhe restava, já que não haviam outros meios de sobrevivência em uma cidade grande. Nunca seria puta, por exemplo, porque lhe faltavam os atributos. Desde que chegou do Nordeste, essa ideia nunca tinha lhe passado pela cabeça. Ninguém olharia para ela com desejo se fosse um frango de padaria a girar no forno, não haveria cães que parariam na frente para babar por ela, nunca.


Daí que nunca soube o que era o amor. A única coisa que queria era amar. Não sabia para que, nem o que se fazia com o amor. Ela pensava que todo mundo no mundo vive para amar e ser amado. “Um dia vou ser tão amada que posso até morrer, porque sei que a felicidade é morrer do coração”, ela dizia para as colegas de quarto.


E mesmo com dificuldade para ler e escrever, na adolescência essa moça tinha o hábito de decorar frases das boleias dos caminhões que passavam pela estrada na frente da sua casa. E achava que aquilo era poesia e ficava toda encantada de ter o nome que tinha, pois supunha que poesia era parente de poema ou coisa parecida. Deixa disso, mulher, desde quando nome de pobre tem a ver com coisa bonita? Isso deve ser outra história. Pousou a vassoura na quina da parede. A amiga queria tornar equívoca aquela ideia e precisava se assegurar da burrice da outra.


Esse não entendimento das coisas parecia ser ruim, mas para Poema era como uma válvula que timidamente acionava a curiosidade dentro dela. E por incrível que possa parecer, ela buscava encontrar o significado das coisas. Uma vez ficou horas pensando por que tinha que limpar as privadas dos quartos dos hóspedes todos os dias. Morava num pequeno conjugado no centro da cidade com mais três mulheres, dormia em um colchonete no canto perto da janela, onde espiava o céu e ficava contando as estrelas antes de dormir. Como também não sabia contar direito, voltava sempre para o início da contagem e recomeçava do zero. Isso a deixava tão  cansada que adormecia. A faxina do banheiro do pequeno apartamento só acontecia aos sábados e revezava com as amigas quem limparia a privada a cada semana. Na semana que chegava a sua vez, ela sofria. Um sofrimento tão cheio de referências do passado, do tempo em que a comida faltava, do sono que faltava, e só lhe restavam os sonhos. O cheiro de murrinha impregnado nos assoalhos encardidos deixava a trágica sensação de que vivia em eterno castigo, como se nunca fosse alcançar a felicidade. E para ela a felicidade poderia ser apenas um detalhe, que caberia apenas em um dia.
Às vezes ouvia música para alegrar seus movimentos, a moça que limpava privadas ligava o rádio que tinha comprado a prestação para ouvir música e entoava com sua voz desafinada alguns trechos das canções que ouvia e que conhecia, e ficava admirada com o som que saía da sua boca, brincando com a acústica que os banheiros têm, como se fosse uma criança descobrindo o mundo a sua volta.


Outra vez ouvira no rádio no meio de uma canção a voz da cantora a declamar: “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas”.


Então ela sentiu uma confusão no peito, quase um susto. Como não sabia distinguir coisa alguma, ficou difícil para ela acreditar que as cartas de amor eram ridículas. E como não conhecia o amor, sentiu-se ridícula. Durante o resto do dia ficou ouvindo os versos do poema martelando na sua mente como uma tortura. Tinha certa dificuldade para ler, mas adquirira com o tempo uma facilidade para decorar as coisas que lhe interessavam.


Quando fora dormir, deitada em seu canto espremido, com a cabeça encostada na parede bem abaixo do parapeito da janela, ficou sussurrando aquela frase que não lhe saía da memória, bem baixinho que é para não acordar as outras meninas. E sonhou com tantas cartas de amor que seu coração ficou todo contente, e mesmo dormindo seu semblante triste enfim sorria.


No dia seguinte, quando acordou, a boba da moça levantou-se toda animada: era domingo, estava de folga, estava também inquieta, tinha sonhado tantos sonhos de amor que mesmo que a poesia continuasse martelando na sua cabeça que as cartas de amor eram ridículas, nada lhe doía.


Poema então pintou cuidadosamente os olhos, foi delineando os cílios, toda bem intencionada. Ainda que não ficasse bonita, era mulher e conservava uma pequena vaidade. Pintou os lábios com o batom vermelho de uma das amigas, passou perfume de farmácia no pescoço, nas axilas, em volta dos seios, até nas pontas do cabelo, despertando a curiosidade das amigas, que a assistiam  curiosas e perplexas, deitadas nos colchões espalhados pelo chão. Era de admirar que aquela figura desprovida de qualquer interesse por si mesma tivesse o ímpeto de se ajeitar, nem que fosse para sentar e assistir televisão.


Poema era assim, vivia desgrenhada, o cabelo encaracolado e maltratado, sem o menor jeito. Podia prender, jogar para um lado ou para o outro, até virar pelo avesso, não adiantava. Mas aquela manhã estava diferente, nem de longe parecia a mesma.
No meio do dia foi andando devagar pela rua, o coração batendo solenemente, estava se deixando levar como um pássaro flutuando no céu. 

Caminhava e vez por outra parava defronte a um outdoor para ler os anúncios e decorá-los. Levava um tempinho até juntar letra a letra, formar palavra e completar frase, mas lerdamente conseguia. Bravamente. E andava adiante repetindo o que acabara de ler, como um papagaio: “O mundo fica melhor com duas línguas”, dizia um anúncio de curso de inglês que mostrava a imagem de um casal em um beijo ardente.


Nesse outdoor, a moça demorou mais tempo para sair, ficou confusa tentando entender o que aquilo queria dizer, mas sabia exatamente o que significava a imagem que estava vendo. E teve raiva. Porque na sua ingenuidade de moça do sertão, diante do que tinha lido e visto, ela que nunca tinha sido beijada não fazia parte do mundo. Ou então seu mundo não era nada bom.


De vez em quando falava consigo mesma, reclamando do seu destino, das ausências que lhe tomavam a alma, gostaria de tanta coisa na sua vida que talvez tivesse que se multiplicar e ter mil Poemas no mundo para tudo o que desejava caber dentro.


Neste dia, aconteceu o inesperado.


Com o coração miudinho, esmagado entre a angústia e uma falta de, sentiu uma vontade imensa de chorar, chorar pelo que não viu, pelo que viu, pelo que não viveu, pela falta de tudo, até da esperança, que de repente escapou-lhe das mãos. Poema entrou no primeiro shopping que estava de portas abertas e foi direto para o banheiro. Tinha vergonha de chorar em público, porque achava feio chorar, e como já era feia de nascença ficaria mais feia ainda chorando, assim pensava. E foi borrando a maquiagem com as lágrimas, sentada no vaso sanitário dentro do reservado do banheiro, chorava feito criança. Gemia feito uma tonta e espremia entre os dedos o papel higiênico onde secava as lágrimas, repetindo com fúria: “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas”.


A moça do sorriso triste levou uma boa hora sentada na privada do banheiro do shopping chorando e resmungando.


Naquele dia inesperado, alguma coisa tinha que acontecer para salvar a alma daquela mulher, mesmo que durasse apenas esse dia teria de ser bom.
Poema levantou-se ainda tonta, mais do que de costume, olhou-se no espelho, desfigurada, fúnebre, a maquiagem borrada, os olhos esbugalhados, abriu a torneira e lavou o rosto.


Abriu a porta do banheiro sem o menor cuidado e saiu pelo shopping lotado feito uma sombra andando entre as pessoas. Um homem de terno elegante tirou o chapéu da cabeça e a cumprimentou parando bem a sua frente, e ficou a admirá-la por uns segundos. Olhavam-se com tanta ternura que pareciam se conhecer de algum lugar ou tempo. Na verdade era ele que a olhava como se escrevesse cada pedaço do seu corpo com a sutileza da alma, coisa que só os poetas conseguem.


Poema, ela se identificou timidamente.


Ele se aproximou e com voz delicada se apresentou também, Fernando.




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7 COMENTÁRIOS:

chica

Sucesso sempre ao Alex! beijos,tudo de bom,chica

Ana Bailune

"Nunca soube o que é o amor, só sabia amar." Este trecho ficou, ficará. Acho que é o tipo de livro que gosto.
Bom dia!

Carmen Lúcia.Prazer de Escrever

Oi Anne,deve ser um livro para ficarmos lendo e relendo cada palavra escrita.
Gostei.
Bjs à você e ao autor.
Carmen Lúcia.

Mimirabolante

Sucesso Alex ! Sucesso Anne Liere sempre tão gentil e atenta ! bjcas

Mimirabolante

...gentil e atenciosa !!! obrigada , mts beijocas

ZULMIRA ROMARIZ

Gostei Anne, suas dicas de leitura
são sempre ótimas, bom fim de semana
beijo

Unknown

Oi Anne: gostei deve ser um livro muito bom, tu e as tuas escolhas geniais adorei.
Bom fim de semana.
Beijos
Santa Cruz

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