CÃO
PANTANEIRO
( MARCIO JR.)
A
tarde acabava de forma preguiçosa, com o sol se pondo lento a oeste. Adiante,
uma imensidão de água, onde os raios solares refletiam naquele espelho
fantástico e faziam com que tudo se tornasse mágico. Era um presente de Deus
para aqueles que se arriscavam a desbravar aqueles confins do Pantanal
Matogrossense.
Na
casa, tudo estava quieto, mas eles, os seres humanos, logo chegariam para
descansar. No local, somente a patroa corria de um lado para outro, afoita pela
lida diária e o preparo do jantar. Mas era silenciosa e não incomodava. O cão
ficava ali, apenas observando. Quando era mais novo, ia para o alagado e
ajudava no manuseio da boiada, mas agora estava velho, e aproveitava as
regalias que esta condição lhe dava. Assim ficava, deitado à porta e observando
as águas mansas daquele imenso rio em que tanto nadou e brincou.
Alguns
latidos se fizeram ouvir, e o cão sabia que a matilha estava se aproximando,
trazendo com eles o patrão e os empregados. Entre eles, vinham os filhos do
patrão, hoje peões trabalhadores e de muita estima, mas que ele viu crescer e
cuidou com uma fidelidade que apenas os cachorros têm em relação ao ser humano.
Mesmo de longe, ele já escutava, também, o trotar dos cavalos e a algazarra da
“peonada”. Vinham felizes e bradando, quase cantando. Era como se mais um dia
fosse vencido naquela dureza que se vivia naqueles confins.
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Logo,
chegavam e se dispersavam. Quem era da casa, ia se ajeitar para o jantar, e os
demais, que eram empregados, partiam para os alojamentos. Lá, tinham o
necessário para viver, e assim como o cão, aguardavam a vez para se alimentar.
A demora era pouca, e alimento não faltava. Nesse meio tempo, o cão se afastava
da casa e ia até as cocheiras. Por mais de uma década fez isso. Ia até lá e
cuidava para que nenhum cavalo ou mula se afastasse, principalmente as
bardosas, que insistiam em não aceitar muito bem o trato dos peões. Depois,
lentamente, voltava para a porta da cozinha e esperava seu trato. Mancava um
pouco de uma das patas traseiras, e isso irritava o patrão, que o achava
inútil. Por vezes, o patrão pensou em sacrificá-lo, mas era contido por um sentimento
de dívida. Aquele cão salvara seu filho mais velho quando um touro brabo
disparou e tentou chifrá-lo. O cão, em sua fidelidade, atacou ferozmente e
conteve o touro, mas sofreu as consequências e por muito pouco não perdeu a
pata traseira ou até mesmo a vida. Nunca mais foi o mesmo.
Depois
do jantar, a família da casa grande se reunia na sala e ligava o velho rádio.
Era um rádio antigo, em forma de capela, onde o patrão buscava notícias sobre o
que acontecia em regiões mais distantes. Mas havia algo que encantava o cão.
Era uma coisa que chamavam de música, e tocava vez ou outra. O cão, quando
escutava aquilo, colava o focinho ao chão e fechava os olhos, deixando-se
hipnotizar. Sem saber, ele sentia saudades. Saudades de tempos passados, onde
ele era forte, lépido e tinha serventia. Desde muito novo acostumou-se a ficar
ali, ouvindo aquele rádio depois do jantar. Adorava aquilo e quase dormia
quando isso acontecia.
Algum
tempo depois, uma ferida grande apareceu na coxa esquerda do cão, exatamente
onde o touro o acertara. Por mais que os filhos do patrão tentassem tratar, não
tinha jeito. A ferida apurava e tomava o corpo do cachorro. Veterinário não
existia por perto, e os remédios caseiros já não serviam mais. Então, o patrão
decretou. Seria sacrificado.
A
patroa chorou, e os peões, que testemunharam a bravura do animal contra o
touro, se recusaram a fazer o determinado. Respeitavam o cão como se fosse um
deles, e jamais matariam aquele animal. Os filhos do patrão imploraram ao pai
que deixasse o animal tentar se curar sozinho, ou que o tempo se encarregasse
daquele fatídico ato, mas ele estava irresoluto. Não arredava pé da decisão que
tomara.
Frente
a isso, como ninguém se propunha a sacrificar o animal, o patrão mesmo
encarregou-se de tal coisa. Colocou o cachorro no carroção e foi para a mata,
afastando-se de todos, pois ninguém queria presenciar a cena. Seria mais fácil
dessa maneira.
Repousou
o animal sob a sombra de uma árvore e engatilhou a espingarda, mirando o meio
da cabeça, mas seus dedos tremeram na hora de puxar o gatilho. O cão olhava
diretamente para seus olhos, e aquilo o fez parar. Não conseguiria fazer
aquilo, e sentia culpa por não ter tratado dignamente daquele que colocou a
própria vida em risco para salvar alguém, ou caso, o próprio filho do patrão.
Porém,
era preciso. O animal estava sofrendo, ele sabia disso. A dor da ferida devia
ser insuportável, e não havia meio de fazê-la regredir. Apontou novamente a
espingarda para a cabeça do cachorro e preparou-se para atirar. O cão, calmamente,
levantou-se de onde estava e veio se deitar mais próximo. Olhou para o
patrão com serenidade e colou o focinho ao chão, como se o velho rádio
estivesse ali, tocando aquelas músicas que tanto lhe traziam saudades. Fechou
os olhos e, estranhamente, soltou um grunhido. Parecia aceitar o que aquele
homem estava por fazer. Era como se soubesse que seu caminho acabava ali e que
a morte era sua única opção. Naquele instante, o patrão pensou ter perdido a
sanidade, pois jurou que uma lágrima escorrera dos olhos do animal. E o patrão
chorou também.
Na
fazenda, todos pararam o que faziam e esperaram. Pouco tempo depois, um tiro de
espingarda ecoou pela mata, e foi acompanhado de um uivo esganiçado do cão. A
passarada saiu em revoada, e aquele instante colocou lágrimas nos olhos de
homens que jamais imaginaram que pudessem chorar. Estava feito.
Uma
hora depois, o carroção apontou na porteira. Era o patrão voltando. Ele acenava
para a patroa e para os filhos, e ao chegar mais próximo da casa, ordenou que
trouxessem cobertores e água quente. Na carroça, no meio de um volume de capim
verde, o cão estava estirado. Não estava morto, pelo contrário, estava bem
vivo, mas com a pata traseira e a coxa completamente queimadas.
O
patrão, sem conseguir sacrificar o animal, tentou um último recurso. Jogou
pólvora sobre a ferida e, como não tinha como acender, atirou numa pedra para
provocar faísca. Pensava, dessa maneira, esterilizar ou limpar de vez a ferida,
porém acabou deixando tudo em carne viva. O cão uivava de dor, mas não estava
indócil. Os peões pegaram o cão e carregaram-no para o estábulo, fazendo o que
estava ao alcance deles. Afrente, o filho mais velho do patrão comandava tudo,
e mais atrás, vinha o patrão, deixando a mostra a camisa encoberta pelo sangue
do cachorro.
Hoje,
quem chega na fazenda, é recebido pelos cães numa algazarra tremenda. O velho
cão não está mais lá, deitado na porta da cozinha, mas ainda está presente na
memória de todos e num retrato num canto da sala. Nesse retrato, ele aparece
deitado aos pés do patrão, que depois de tudo, tratou dele por mais cinco anos.
O cão perdeu a pata traseira e parte da coxa, mas valente como era, resistiu e
ganhou ainda mais o respeito daquele homem rústico e que não gostava de
demonstrar sentimentos.
Perto
da porteira, uma árvore enorme faz sombra para um cercado pequeno de madeira.
Lá, descansa o cão em seu último refúgio. Ao lado, um presente do patrão. O
velho rádio capela, que tocava as músicas que o cão tanto gostava.
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8 COMENTÁRIOS:
Lembro bem desse lindo conto, tão emocionante do querido Marcio! Adorei vê-lo aqui! abração aos dois!chica
Oi Anne!
Parabéns pela postagem do padrinho que conseguiu emocionar todos que leram esse texto.
Uma estória que prende atenção do início ao fim.
abração duplo
GOSTEI TANTO DA HISTÓRIA QUE AINDA
QUERIA LER MAIS MAS JA HAVIA ACABADO QUE LINDA ANNE PARABENS PELA BELA POST PARABENS AO MARCIO LINDO O TEXTO
CONSEGUE PRENDER A ATENÇÃO DA PRIMEIRA A ULTIMA LINHA UM ABRAÇO MARLENE
OI ANNE!
QUE TEXTO MARAVILHOSO, CONFESSO QUE FIQUEI COM OS OLHOS MAREJADOS,
QUEM AMA OS ANIMAIS NÃO TEM COMO NÃO SE EMOCIONAR, LINDO.
ABRÇS
http://zilanicelia.blogspot.com/
Anne, minha amiga.
Hoje foi um dia bastante atribulado, e te confesso que não foi lá muito bom. Saí da faculdade e vim para casa pensando unicamente em dormir, e quando abro meu blog, vejo a chamada para cá.
Esse cão pantaneiro é danado. Além de me cativar, ele tem cativado também a outras pessoas. E o melhor, tanto ele quanto você me deram esse presente, que é o de estar aqui, no Recanto dos Autores.
Sabe que eu já estava com uma pontinha de ciúmes dos autores que você escolhia para colocar aqui, nessa galeria fantástica. E sem esperar, chegou meu dia. Te sou grato por isso, pois para mim, nada mais é do que o reconhecimento de alguém por quem detenho o maior respeito, além, claro, de poder mostrar o que eu escrevo para este público crítico e maravilhoso do blog.
Aliás, a Chica e a Kunti são daquelas que estimo acima de qualquer coisa. A Chica é uma amiga fora do comum e de um talento ímpar, e quanto a Kunti, sou suspeito para falar... rsrsrs. É minha afilhada, então, nem vou elogiar (mas é fantástica). A Zilani e a Marlene ainda não conhecia, mas agradeço imensamente a elas e às palavras de extremo carinho que deixaram.
Anne, deixo meu carinho de sempre, e hoje também um agradecimento especial a você.
Grato.
Marcio
Li esse conto no blog do Márcio e achei fantástico. Parabéns pela escolha! Beijos
Li esse conto no blog do Márcio e achei fantástico. Parabéns pela escolha! Beijos
Li esse conto no blog do Márcio e achei fantástico. Parabéns pela escolha! Beijos
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