Nem sempre o mar ensina a navegar quando a ilha é desconhecida
( Luciana Santa Rita)
"...
Disparate, já não há ilhas desconhecidas. Quem foi que te disse, rei, que já
não há ilhas desconhecidas. Estão todas nos mapas. Nos mapas só estão as ilhas
conhecidas. E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura? Se eu te
pudesse dizer, então não seria desconhecida. Nesse caso, por que teimas em
dizer que ela existe? Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha
desconhecida....Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não vemos se
não saímos de nós... “(José Saramago in Conto da Ilha Desconhecida. Companhia
das Letras. São Paulo, 1998)
Por trás
dessa aparente inquietação da navegação a deriva, penso que Saramago desejava
muito mais que apresentar uma parábola do sonho do porto seguro. Talvez,
aperfeiçoar a resistência à consolidação das coisas visíveis; como se dos
embates que não enxergamos, auferisse-se a negação fulcral à concretização do
sonho em si mesmo.
De um
lado, devia acreditar que cada um sonha sem considerar a invisibilidade da
ilha. Ou mesmo acreditar que não há ilha desconhecida ou aventuras
oceânicas que não se atemorizem frente ao mar tenebroso.
Por outro
lado, sempre é necessário ultrapassar o sonho para ver a ilha e quem sabe
compreender a vontade de abrir todas as janelas da embarcação, independente da
visão do sol em terra à vista. Acho que não poderia ser a certeza de um
naufrágio sem culpa da humanidade, mas, apenas a morte de todos os presságios
da rota traçada. Seria apenas o caminhar da caravela solitária ao seu destino.
De forma
geral, sonho morre quando deixamos morrer. Morre sufocado pelo incerto. Morre sem
cremação ou missa de sétimo dia. Morre talvez por tentar extravasar-se pelos
seus olhos contidos. Morre porque o deixamos sem os óculos ou mesmo sem o
remédio de pressão. Morre porque deixamos a porta aberta para a despedida.
Morre porque insistimos no elevador que desce sem a noção dos andares. Morre
porque justamente não suporta a indiferença do espirar do horário. Morre porque
faz a devolutiva da fé e arruma a cama sem pensar na recompensa do cobertor.
Penso que
sonho nasceu para ser guardado e não se desfalecer em recuo, deveria, assim,
morar no melhor quarto da casa com vidraças de cristal. Deveria não incomodar e
não ter direito as testemunhas. Todo sonho tem seu mundo simbólico. E
talvez seja mais próximo do amor, pois não sabe conviver com o inacabado.
E assim é
o sonho do outro, às vezes já nasce em um santo sudário. Penso que bastaria que
abríssemos as nossas recordações para não fazer túmulos dos sonhos alheios.
Bastaria entendermos que não há como sonhar sem tocar no sonho ou acreditar na
realidade do outro. Bastaria rejeitar a frase de Renato Russo em que
declama que a humanidade está ficando desumana.
Demorei
um pouco para entender que não há cúmplices para desbravar a ilha desconhecida.
Assim, quase não conclui, persisti ou cheguei à nau. É difícil falar em
prolongar sonho quando o consideramos findado. Penso que um sonho nunca deveria
ter pontos finais. É como a queda lenta dos brincos de viúva contra o
chão em mil gotas vermelhas que não permitem o resgate na areia.
Não é
fácil ultrapassar a linha tênue das ilhas conhecidas e não basta desejar um
barco para depois partir, precisa-se da vocação verdadeira da caravela. Ao
pensar no sentido dessa frase penso na rendição à acomodação frente
a uma ilha desconhecida. Às vezes naufraga-se pelo caminho ou se
transforma várias vezes sem nenhuma emoção, nenhuma vontade de continuar.
Transforma-se no orfanato involuntário dos cardumes.
Não diria
que o tempo das marés não resolve nada ou muito menos amplia os limites da
realidade, mas com certeza amortece e acalma a sensação de perder a senha do
banco. A questão não é que a ilha desconhecida permite a debandada em silêncio,
mas a escolha de se dividir o sonho pode ser apenas obra de ficção científica
ou uma vida de procura sem recompensa na estadia. Às vezes não conta com a
cumplicidade de estranhos e é tão desalentadora como a espera do chuveiro
quente no inverno.
Não
existe apogeu no olhar indiferente, na busca contrária a normalidade do
estibordo. Pensando na mais fiel definição da procura da ilha desconhecida,
tenho que concordar com o gato de Lewis Carroll, quando ele fala que quando não
se sabe para onde vai, qualquer caminho serve.
Já me
senti assim, me afastando, indo embora e destoando o entendimento que a
embarcação está sem velocidade. Dia após dia, sem perceber que velas
estavam amarradas não porque concedi as algemas, mas por não me atrever a
levar o barco à doca. Acho que andei parando e não olhando além da proa.
Do
interior, não vi a paisagem fixa e adiantei a ressaca para voltar
ao porto. Acho que sem querer perdi o romantismo da partida, e olhe que nem
tenho certeza se algum dia fechei os olhos a espera da ilha. Antecipei logo a
crise perto da data do despacho e até do repertório de fazer as malas e desisti.
Acho que
o provisório do mar com intensas tempestades ampliou as minhas
invencibilidades. Acho que não acreditei na destruição do vazio do eremita.
Qualquer um navega melhor acompanhado e não há como fugir do código das
gaivotas à paisana. E agora acentuo a minha frieza, principalmente quando
falta a partida frente a presunção egoísta do futuro incerto.
Gosto de
me recordar na estranha obviedade de Fernando Pessoa quando ele colocava
que navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso,
viver não é preciso." Imagino que sonhar seja preciso e passa a ser
um delírio inútil se os caminhos foram feitos pelos que passam cegos às ilhas
desconhecidas face ao perigo.
Li em certa ocasião que Michelangelo um dia respondeu a respeito de como tinha feito a escultura de Davi com cerca de 4,5 metros de mármore. Sua resposta foi: fácil fiquei horas olhando o mármore e enxergando o Davi, ai peguei o martelo e o cinzel e tirei tudo aquilo que não era Davi. Acho que ele percebia alguma espécie de sentido ou o que viria depois.
Li em certa ocasião que Michelangelo um dia respondeu a respeito de como tinha feito a escultura de Davi com cerca de 4,5 metros de mármore. Sua resposta foi: fácil fiquei horas olhando o mármore e enxergando o Davi, ai peguei o martelo e o cinzel e tirei tudo aquilo que não era Davi. Acho que ele percebia alguma espécie de sentido ou o que viria depois.
Não
sepultando a esperança é possível aceitar sem resistência e desalento a
possibilidade do futuro com a ilha. Basta apenas vingar as palavras
do poeta português Fernando Pessoa:"Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar
a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e
inexpugnavelmente nosso".
É preciso
dispensar os mapas ou as bússolas que não se sustentam em mar aberto e enfim
encontrar a ilha. "A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à
procura de si mesma."
Visite a autora: Luciana Santa Rita
5 COMENTÁRIOS:
Luciana é maravilhosa e lê-la aqui ou lá é sempre legal! Nos faz bem! beijos às duas,chica
Olá Anne! Que prazer em ler a análise que a Luciana fez sobre o pensamento do mestre Saramago. A busca da ilha desconhecida me fez lembrar o sonho humano do Paraíso que, para mim, é mais uma esperança do que uma saudade. E, mais do que encontrar a ilha, a busca é o que importa. Um abraço saudoso para você e parabéns à Luciana, tão lúcida e perspicaz.
LINDO POST!!! TENHA UMA ÓTIMA SEMANA QUERIDA ! TB TE OFEREÇO UM SELINHO DARDO NESTE E NOS SEUS OUTROS BLOGS, QUE CD UM TEM SUA MAGIA. UM GRANDE BJO
Os sonhos só morrem mesmo quando os deixamos morrer.
O mapa do tesouro são nossos sonhos, e sempre haverá uma ilha desconhecida para descobrirmos...
Lindo texto.
Os sonhos nos inspiram a viver melhor.
Beijooooo!
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